quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O Frio da Navalha


O Frio da Navalha          
Rafael Augusto

Não acreditei quando vi. Mesmo vendo ele deitado ali, naquele caixão, com o nariz tampado por algodão, não consegui acreditar. Minha idade, minha altura, e lá, esticado imóvel, sem existir. A morte de Julio Fertucci arrepiou todos os pelos do meu corpo. Equipes de TV, um cortejo de fãs. Claro que o meu funeral não causará tanto alvoroço... Mesmo assim, a espinha gela e trinca. Não é medo de morrer... É algo diferente. Não consigo explicar. Muita gente gostava dele. Não era loucura de fã. O que falar de um cara que escalou o monte Everest, correu a maratona do Ártico, fazia gestos de caridade com cheques gordos; Fez mais pelas crianças, sozinho, do que toda a Legião da Boa Vontade. Sempre levando a bandeira do país onde quer que fosse, dizendo que aqui era o melhor lugar do mundo pra se viver. Uma fatalidade ter sido baleado no sinal de transito. Uma verdadeira ironia do destino. Mas não seria de se espantar em ver seu assassino no meio do cortejo fúnebre se martirizando “matei o melhor homem que já pisou sobre a terra!”. Deve se sentir como Judas agora.
                Muito ao contrário da vida do Dr. Fertucci, a minha não tem nada de extraordinário. Eu sou o que se poderia classificar de “ranço pessimista”. Um caractere chato do que sobrou do século XX. Ando sempre resmungando. Onde estou é sempre o pior lugar do Universo. Isso é normal também. Contas e contas para pagar e eu sequer consigo me mover da frente da televisão. Mas não sou do tipo preguiçoso. Apenas desisti. Não sei de quê. Desisti. Minha esposa me largou depois que fui ao mercado pela manhã e só voltei à noite, sem ao menos uma sacola na mão. Ela não aguentava mais. Eu também não me aguento mais. Seria isso culpa do ócio? Sofri um acidente e me aposentei por invalidez. Além de uma aposentadoria, recebo do estado uma pensão depois que um trator de uma obra pública ma atingiu. Antes disso, era diretor de uma fábrica de farinha trigo. Não consigo me lembrar do acidente. Nem como fui parar perto de uma obra. Não preciso trabalhar. Nem teria coragem para isso.
                As pessoas me falam “Saia desse marasmo!” ou então: “Faça uma viagem, algo do tipo”. O problema é que não consigo mover um átimo do meu corpo. Nada me anima. Viagens, mulheres, livros, futebol, música. Nada mais tem sentido depois que vi no caixão do Dr. Cararrara minha imagem. Quer dizer, tem sentido alguma coisas na perspectiva da morte? Depois que me aposentei li muitos livros. Dostoievski, Santo Agostinho, Nietzsche, Kant, Platão, Sócrates, Confúcio, Hume etc. procurando uma resposta para tudo isso e percebi que pensar agora é apenas capricho. Confesso. Na verdade eu estou à beira de cometer suicídio enquanto você lê minha mente. Minha mulher me abandonou quando mais precisei. Eu tentava explicar-lhe o que sentia ela apenas repetia: “Deixe de frescura!”. É fácil falar quando sua maior preocupação é o que será servido no jantar, ou o que seu chefe vai lhe pedir amanhã no serviço. Mas não a culpo. A paciência se vai mesmo. E esse último mês foi decisivo. Não tinha ânimo sequer pra sair de casa, o que eu fazia com até certa frequência antes dela se mandar.
E agora aqui segurando essa arma. Prateada. Brilha como a lua cheia. Os motivos pelos quais escolhi a Colt 45 Magnum são óbvios: não há chance de esse suicídio falhar e uma sequela deixar a vida pior do que já é. Woody Allen disse em um dos seus filmes: “a vida se divide entre infeliz e miserável, onde os infelizes somos nós, pessoas comuns, e os miseráveis são os deficientes, esfomeados etc.”. Foi isso, ou alguma coisa parecida com isso. Não estou com muita cabeça (e em breve, nenhuma) para pensar nesse tipo de...
                - O que tu tá fazendo com essa arma na mesa?
                Isabela irrompeu na sala com tamanha força de estrondo na porta, que talvez morreria antes de susto!
                - Comprei pra me matar depois que você foi embora.
                - Eu não te abandonei. Você me abandonou! Tava dando vacilo demais! – tirou a arma de perto de mim. – Fazia tempo que eu não vivia mais com meu marido. Ele foi embora e deixou uma carniça que rasteja pela casa toda. Achou que a vida não tinha sentido, e agora? Tem menos ainda!
                - Você não tá me entendendo...
                - Claro que estou! Você acha que porque a vida não tem sentido, não vale a pena ser vivida. Vive sem vontade de fazer nada, mas é justamente por não fazer nada que essa falta de vontade lhe vem. Pensou que seria muito mais na vida e agora anda frustrado, mas aposto que muita gente se mataria para ter a vida que tu tem!
                - A desgraça dos outros não me consola.
                - Não, mas deveria!
                - Talvez eu não estivesse assim se tivesse uns problemas mais graves, eu acho.
                - Quem sabe? Você só tem uma vida e não é capaz nem de esperar a morte chegar. Viu como é frustrado? Não consegue nem esperar a própria morte: acha que tem o direito de antecipar sua morte!
                - Tenho todo o direito sobre a minha vida.
                - Não tem não... Se você tivesse algum direito sobre sua vida, tentaria fazer algo por ela. Seu único compromisso é com a liberdade de Cuba, no balcão de um bar.
                Isabela tinha razão. Desde que me aposentei virei um beberrão de primeira. Será que não tenho nada mais pra conquistar? E o ridículo de tentar resgatar nossas aspirações juvenis?
                - Sua filha: só quero que pense bem, Toni.
                Meu Deus! Esqueci-me completamente de Ana. E pensar que a distância a apagou de minha memória. E pensar que foi em homenagem a Anna Karenina que a batizei assim...
                - Minha pequena Karenina...
                - Ela nunca se esquece de tu!
                Isabela despejava verdades em mim. E eu que achava que tinha ficado esperto ao ler tudo aquilo. Mal conseguia retrucar uma dona de casa que sequer lia mais que receitas de bolo. Ela adorava me fazer bolo de mandioca. Que bolo gostoso!
                - Tem como você fazer aquele bolo gostoso?
                - O quê?
                - Bolo de mandioca, lembra?
                Depois de uns minutos refletindo, ela parecia compreender.
                - Vou buscar minhas coisas.
                - Ei, antes de ir, lembra-se daqueles dias de bolo de mandioca com café, aqui aos fins de tarde? A luz do sol ficava bonita demais quando refletia no seu rosto. – Ela olhou para a janela que dava pra varanda. E viu a mesma luz, fechou os olhos e chorou. – Aqueles momentos faziam a vida toda valer a pena. Pelo menos enquanto a gente não pensava neles.
                Ela saiu rindo, com os olhos aquipiscando. Ela ia voltar. Isabela me fez reconhecer: muito barulho por nada. O silêncio falou por todos nós.

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