
Não acreditei quando vi. Mesmo vendo ele deitado ali, naquele
caixão, com o nariz tampado por algodão, não consegui acreditar. Minha idade,
minha altura, e lá, esticado imóvel, sem existir. A morte de Julio Fertucci arrepiou
todos os pelos do meu corpo. Equipes de TV, um cortejo de fãs. Claro que o meu
funeral não causará tanto alvoroço... Mesmo assim, a espinha gela e trinca. Não
é medo de morrer... É algo diferente. Não consigo explicar. Muita gente gostava
dele. Não era loucura de fã. O que falar de um cara que escalou o monte Everest,
correu a maratona do Ártico, fazia gestos de caridade com cheques gordos; Fez
mais pelas crianças, sozinho, do que toda a Legião da Boa Vontade. Sempre
levando a bandeira do país onde quer que fosse, dizendo que aqui era o melhor
lugar do mundo pra se viver. Uma fatalidade ter sido baleado no sinal de
transito. Uma verdadeira ironia do destino. Mas não seria de se espantar em ver
seu assassino no meio do cortejo fúnebre se martirizando “matei o melhor homem
que já pisou sobre a terra!”. Deve se sentir como Judas agora.
Muito ao contrário da vida
do Dr. Fertucci, a minha não tem nada de extraordinário. Eu sou o que se
poderia classificar de “ranço pessimista”. Um caractere chato do que sobrou do
século XX. Ando sempre resmungando. Onde estou é sempre o pior lugar do
Universo. Isso é normal também. Contas e contas para pagar e eu sequer consigo
me mover da frente da televisão. Mas não sou do tipo preguiçoso. Apenas
desisti. Não sei de quê. Desisti. Minha esposa me largou depois que fui ao
mercado pela manhã e só voltei à noite, sem ao menos uma sacola na mão. Ela não
aguentava mais. Eu também não me aguento mais. Seria isso culpa do ócio? Sofri
um acidente e me aposentei por invalidez. Além de uma aposentadoria, recebo do
estado uma pensão depois que um trator de uma obra pública ma atingiu. Antes
disso, era diretor de uma fábrica de farinha trigo. Não consigo me lembrar do
acidente. Nem como fui parar perto de uma obra. Não preciso trabalhar. Nem
teria coragem para isso.
As pessoas me falam “Saia
desse marasmo!” ou então: “Faça uma viagem, algo do tipo”. O problema é que não
consigo mover um átimo do meu corpo. Nada me anima. Viagens, mulheres, livros,
futebol, música. Nada mais tem sentido depois que vi no caixão do Dr. Cararrara
minha imagem. Quer dizer, tem sentido alguma coisas na perspectiva da morte?
Depois que me aposentei li muitos livros. Dostoievski, Santo Agostinho,
Nietzsche, Kant, Platão, Sócrates, Confúcio, Hume etc. procurando uma resposta
para tudo isso e percebi que pensar agora é apenas capricho. Confesso. Na
verdade eu estou à beira de cometer suicídio enquanto você lê minha mente.
Minha mulher me abandonou quando mais precisei. Eu tentava explicar-lhe o que
sentia ela apenas repetia: “Deixe de frescura!”. É fácil falar quando sua maior
preocupação é o que será servido no jantar, ou o que seu chefe vai lhe pedir
amanhã no serviço. Mas não a culpo. A paciência se vai mesmo. E esse último mês
foi decisivo. Não tinha ânimo sequer pra sair de casa, o que eu fazia com até
certa frequência antes dela se mandar.
E agora aqui segurando essa arma. Prateada. Brilha como a lua cheia. Os motivos
pelos quais escolhi a Colt 45 Magnum são óbvios: não há chance de esse suicídio
falhar e uma sequela deixar a vida pior do que já é. Woody Allen disse em um
dos seus filmes: “a vida se divide entre infeliz e miserável, onde os infelizes
somos nós, pessoas comuns, e os miseráveis são os deficientes, esfomeados
etc.”. Foi isso, ou alguma coisa parecida com isso. Não estou com muita cabeça
(e em breve, nenhuma) para pensar nesse tipo de...
- O que tu tá fazendo com
essa arma na mesa?
Isabela irrompeu na sala
com tamanha força de estrondo na porta, que talvez morreria antes de susto!
- Comprei pra me matar
depois que você foi embora.
- Eu não te abandonei.
Você me abandonou! Tava dando vacilo demais! – tirou a arma de perto de mim. – Fazia
tempo que eu não vivia mais com meu marido. Ele foi embora e deixou uma carniça
que rasteja pela casa toda. Achou que a vida não tinha sentido, e agora? Tem
menos ainda!
- Você não tá me
entendendo...
- Claro que estou! Você
acha que porque a vida não tem sentido, não vale a pena ser vivida. Vive sem
vontade de fazer nada, mas é justamente por não fazer nada que essa falta de vontade
lhe vem. Pensou que seria muito mais na vida e agora anda frustrado, mas aposto
que muita gente se mataria para ter a vida que tu tem!
- A desgraça dos outros
não me consola.
- Não, mas deveria!
- Talvez eu não estivesse
assim se tivesse uns problemas mais graves, eu acho.
- Quem sabe? Você só tem
uma vida e não é capaz nem de esperar a morte chegar. Viu como é frustrado? Não
consegue nem esperar a própria morte: acha que tem o direito de antecipar sua
morte!
- Tenho todo o direito
sobre a minha vida.
- Não tem não... Se você
tivesse algum direito sobre sua vida, tentaria fazer algo por ela. Seu único
compromisso é com a liberdade de Cuba, no balcão de um bar.
Isabela tinha razão. Desde
que me aposentei virei um beberrão de primeira. Será que não tenho nada mais
pra conquistar? E o ridículo de tentar resgatar nossas aspirações juvenis?
- Sua filha: só quero que
pense bem, Toni.
Meu Deus! Esqueci-me
completamente de Ana. E pensar que a distância a apagou de minha memória. E
pensar que foi em homenagem a Anna Karenina que a batizei assim...
- Minha pequena
Karenina...
- Ela nunca se esquece de tu!
Isabela despejava verdades
em mim. E eu que achava que tinha ficado esperto ao ler tudo aquilo. Mal
conseguia retrucar uma dona de casa que sequer lia mais que receitas de bolo.
Ela adorava me fazer bolo de mandioca. Que bolo gostoso!
- Tem como você fazer
aquele bolo gostoso?
- O quê?
- Bolo de mandioca,
lembra?
Depois de uns minutos
refletindo, ela parecia compreender.
- Vou buscar minhas
coisas.
- Ei, antes de ir,
lembra-se daqueles dias de bolo de mandioca com café, aqui aos fins de tarde? A
luz do sol ficava bonita demais quando refletia no seu rosto. – Ela olhou para
a janela que dava pra varanda. E viu a mesma luz, fechou os olhos e chorou. –
Aqueles momentos faziam a vida toda valer a pena. Pelo menos enquanto a gente
não pensava neles.
Ela saiu rindo, com os
olhos aquipiscando. Ela ia voltar. Isabela me fez reconhecer: muito barulho por
nada. O silêncio falou por todos nós.